No começo, seo Firmino Pereira, 65 anos, não entendeu nada. Um monte de mulher pintada, com pouca roupa, parando o trânsito em plena Avenida Getúlio Vargas. E nem é carnaval! Vendedor de pipoca há 25 anos, ele concordou com a Marcha das Vadias que cortou o centro de Cuiabá na tarde deste sábado quando soube que, em síntese, o movimento é para lutar contra o machismo. “Tá certo”.
Há alguns centímetros de Firmino, Sandra da Silva Pereira, 28 anos, fez cara feia para a passeata e resmungou com os clientes depois que a barulheira diminuiu. A vendedora de cachorro-quente tem uma opinião diferente do colega. “Se quer beijar outra mulher, beija. Se quer usar roupa curta, usa. Por que vai fazer manifestação pra isso? Isso vai mudar a vida de quem? Agora, com aborto eu não concordo”, declarou.
Sandra pode até ter discordado do ato, mas a passeata a provocou sobre o tema. Quando as “vadias” passaram, ela refletiu e expôs sua opinião. E foi assim por quase todo o trajeto. Caras feias, aplausos e conversas ao pé do ouvido. Os manifestantes atingiram seu objetivo.
Além dos gritos de ordem, os participantes entregaram panfletos explicando um pouco do ato a quem parou para assistir. “A Marcha das Vadias é um evento internacional com o propósito de debater sobre a culpabilização das vítimas de violência sexual. É comum que ao invés de culpar o(s) autor(es) do crime, a culpa se sobrecaia na vítima, justificando a agressão física a partir das roupas ou supostos comportamentos apresentados pela vítima”, explica o texto.
Vadia Taquara
A concentração foi na Prainha, sob os olhares da estátua de bronze de Maria Taquara, do artista plástico Haroldo Tenuta. Reza a lenda que a negra, esguia, pobre lavadeira quebrou paradigmas da sociedade cuiabana da década de 1940 ao ser a primeira mulher a usar calças. Também é lembrada pela libido. Dizem que Maria se deitava e fazia a alegria do 16º Batalhão de Caçadores. E foi dos pés de Taquara que a marcha saiu.
A manifestação seguiu pela Prainha, subiu a Getúlio Vargas e parou na Praça Santos Dumont. No trajeto, funks de Valesca Popozuda deram o tom, junto com o “batuque das vadias”, que seguia atrás do carro de som. Os discursos reclamavam a liberdade de escolha, o livre uso do corpo, o direto a sexualidade e fim da violência sexual.
“Se o corpo é da mulher, ela dá pra quem quiser. Até para outra mulher”, provocava um dos cânticos. O tom do discurso se acirrou na largada, pois a concentração foi feita perto de uma igreja católica e outra protestante e em frente a Igreja Matriz, na Getúlio Vargas. “Abaixo o fundamentalismo religioso”, bradava uma das manifestantes com o microfone.
Peladas x peladeiros
Quando a marcha passou por um campo de futebol na Avenida Getúlio Vargas, os peladeiros pararam ao ver as meninas com trajes curtos. Mesmo em minoria, soaram as piadas sexistas contra as quais o ato foi criado. Quem ouviu as provocações, revidou mostrando cartazes. Um manifestante entregou o panfleto sobre o movimento e não foram todos que aceitaram pegar o papel. O protesto continuou. O jogo segue.
“Este ano houve menos participantes do que na marcha do ano passado, mas o mais importante é a conscientização popular contra os dogmas machistas. Combatemos também dogmas religiosos e homofóbicos, e defendemos a liberdade corporal e sexual”, disse a estudante universitária e estagiária Larissa Corrêa, de 20 anos.
A técnica em enfermagem Aline Kawana Gomes, de 22 anos, acredita que há uma maior conscientização da sociedade nos últimos anos, mas que ainda há muita falta de respeito. Ela reclamou do fato de alguns homens que estavam assistindo à marcha terem “mexidos” com as manifestantes, dizendo que queriam ver os seios delas.
"Existe muito preconceito em Cuiabá, quanto à forma de as mulheres se vestirem, ou o fato de elas usarem tatuagem. Mas isso está sendo vencido"
“Já estive na Marcha das Vadias de São Paulo e percebo que, aqui em Cuiabá, as meninas estão muito mais politizadas e conscientes que antigamente. Existe muito preconceito em Cuiabá, quanto à forma de as mulheres se vestirem, ou o fato de elas usarem tatuagem. Mas isso está sendo vencido”, afirmou.
“A principal mensagem que queremos passar é que estamos lutando pelo direito das mulheres sobre seus próprios corpos, sem ter ninguém para julgar, seja o governo ou o patrão”, concluiu.
Origem
A Marcha das Vadias teve início no Canadá como uma manifestação pelos direitos da mulher. Em 2011, após diversos casos de abuso sexual em mulheres na Universidade de Toronto, o policial Michael Sanguinetti teria afirmado que, para evitar o estupro, as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias.
O termo “vadia” foi adotado e batizou a marcha, que em inglês é chamada Slut Walk. No Canadá, o evento causou polêmica pelos seios de fora e frases de efeito pintadas nos corpos das mulheres. No Brasil, o movimento ganhou força no ano passado.
Autor: Olhar Direto - Midia News